Tratamento de Autismo: três práticas abusivas dos planos de saúde

Uma em cada 36 crianças nos Estados Unidos é autista conforme os dados de pesquisa divulgados em março de 2023. O levantamento de prevalência do autismo é atualizada a cada dois anos nos Estados Unidos, considerando crianças com oito anos de idade. 

Essa informação foi divulgada pelo CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças), a principal autoridade mundial em relação à prevalência do autismo, com dados de 2020.

De acordo com especialistas, o número surpreendente também reflete a tendência brasileira, na qual os diagnósticos tiveram um salto significativo nos últimos anos, apesar de não haver números oficiais. Dados do Censo Escolar mostram um aumento de 280% no número de estudantes com TEA matriculados em escolas públicas e particulares apenas no período entre 2017 e 2021.

A explosão de diagnósticos chamou a atenção da comunidade médica e também da comunidade jurídica, com novas discussões permeando o debate sobre o transtorno e suas implicações legais.

Como o TEA é caracterizado pelo desenvolvimento atípico das funções neurológicas do indivíduo, podendo interferir na capacidade de comunicação, linguagem e no comportamento social da pessoa autista, o seu tratamento inclui o atendimento terapêutico multiprofissional e é justamente essa uma das causas que dificulta uma cobertura completa pelos planos de saúde.

Entre as terapias abrangidas, podemos destacar as com método ABA/Denver, terapia ocupacional, fonoaudiologia, musicoterapia, equoterapia, entre outras. Elas são extremamente necessárias nos anos iniciais da primeira infância, para garantir autonomia e independência da criança. 

O adiamento de qualquer tratamento prescrito para o transtorno de espectro autista pode comprometer de forma irremediável o desenvolvimento de seu portador. E apesar de serem terapias com eficácia comprovada e com vedação à limitação de sessões, elas ainda não são fornecidas de forma regular pelos órgãos administrativos.

Vamos analisar a seguir as principais características do TEA, o que diz a jurisprudência brasileira ao seu respeito e sinalizar três práticas recorrentes dos planos de saúde para negar a cobertura de tratamentos, para que você possa identificar e combater uma decisão abusiva por parte da operadora.

Autismo e seus tratamentos

Segundo o Ministério da Saúde, os primeiros sinais do TEA podem ser percebidos nos primeiros meses de vida, com o diagnóstico estabelecido por volta dos 2 a 3 anos de idade, sendo mais frequente nas pessoas do sexo masculino.

Muitas vezes há dificuldade no diagnóstico, associada ao fato de o espectro abranger “graus que podem ser leves e com total independência, apresentando discretas dificuldades de adaptação, até níveis de total dependência para atividades cotidianas ao longo de toda a vida”, de acordo com informações do Ministério da Saúde. Além disso, a inespecificidade dos sintomas também pode ser um obstáculo para o diagnóstico.

O diagnóstico de TEA é feito de maneira clínica, a partir de observações, entrevistas e aplicação de instrumentos específicos, não havendo nenhum exame laboratorial que o identifique. Apesar de não haver uma cura para o transtorno, os especialistas ressaltam a importância do diagnóstico o e intervenção precoces.

Com o laudo, o médico é capaz de montar uma equipe interdisciplinar personalizada para acompanhar as necessidades de cada paciente. Os casos graves, sem intervenção intensiva, podem levar algumas crianças a não adquirir a fala, nos casos mais leves, o diagnóstico também interfere na qualidade de vida do indivíduo, que passa a se encaixar com mais conforto na sociedade.

Como o autismo é um transtorno do neurodesenvolvimento, que muda a forma como as pessoas vêem e interagem com o mundo, é muito importante encontrar intervenções de qualidade, porém, a realidade vivida pelas pessoas com TEA e por seus núcleos familiares está longe de funcionar bem.

Falta acesso aos serviços de saúde que assegurem o diagnóstico precoce e o atendimento terapêutico multiprofissional, tanto na rede pública quanto privada.

O que diz a lei brasileira sobre o autismo e planos de saúde?

Antes da existência de legislação específica, é fundamental destacar que o direito à saúde é um direito fundamental assegurado pela Constituição Federal, conforme previsto no artigo 196.

No contexto do autismo, a Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656 de 1998), em seu artigo 10, estabeleceu a obrigatoriedade de cobertura por parte dos planos de saúde para as doenças listadas na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial de Saúde. Isso inclui o TEA, identificado pelo código 6A02.

Adicionalmente, a Lei 12.764 de 2012 instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, tornando obrigatório o fornecimento de atendimento multiprofissional aos pacientes com autismo.

Contudo, mesmo com essas leis em vigor, até 2022 os planos de saúde ainda encontravam brechas para negar as solicitações de tratamento pelos pacientes, por falta de disposição legal ou administrativa mais específica sobre a obrigatoriedade deles para com os tratamentos da pessoa com autismo.

Em resposta a essa lacuna e às demandas da sociedade, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) aprovou a Resolução Normativa 539 em 23 de junho de 2022, eliminando qualquer ambiguidade em relação à responsabilidade dos planos de saúde em cobrir os tratamentos necessários, sem limitações, visando o melhor desenvolvimento dos pacientes autistas, de acordo com a prescrição médica individual.

Ou seja, desde 1º de julho de 2022, qualquer método ou técnica indicado pelo médico assistente para o tratamento do paciente com autismo deverá ser coberta pelo plano de saúde, com uso ilimitado de terapias de psicologia, fonoaudiologia, terapia ocupacional e fisioterapia para quaisquer pacientes.

Três práticas abusivas dos planos de saúde no tratamento de autismo 

Dada a importância da intervenção precoce no desenvolvimento do portador de TEA, é de suma importância estar informado e atento sobre as principais brechas que os planos de saúde usam para negar a cobertura de tratamentos. Assim, é possível preparar pedidos mais assertivos e entrar mais rapidamente com ações judiciais de forma a corrigir as práticas abusivas.

  • 1º argumento: “A Terapia ABA não está incluída no Rol da ANS”

A Terapia ABA (sigla em inglês para Análise do Comportamento Aplicada) é o tratamento multidisciplinar do autismo mais comum e recomendado pelos médicos, exigindo uma equipe de profissionais composta por neuropediatras, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, pedagogos, psicólogos, entre outros, com carga horária de 20 a 40 horas semanais.

Segundo alguns planos de saúde, este tipo de terapia é considerado experimental e não consta no Rol de procedimentos da ANS. 

Embora a Terapia ABA não seja expressamente mencionada no Rol, vimos anteriormente que desde junho de 2022 a ANS incluiu no citado ROL a obrigatoriedade dos planos de saúde em fornecer os tratamentos necessários para pacientes acometidos pelo transtorno do espectro autista e terapia ABA se encaixa como um deles, desde que indicada pelo médico assistente.

Confira a transcrição do art. 6º, §4º da citada norma 539/22 que ressalta essa função:

“Art. 6º (…) 

§ 4º Para a cobertura dos procedimentos que envolvam o tratamento/manejo dos beneficiários portadores de transtornos globais do desenvolvimento, incluindo o transtorno do espectro autista, a operadora deverá oferecer atendimento por prestador apto a executar o método ou técnica indicados pelo médico assistente para tratar a doença ou agravo do paciente.”

  • 2º argumento: “O tratamento multidisciplinar exige muitas consultas”

Outro fator que dificulta a aplicação da Terapia ABA é que o tratamento multidisciplinar envolve uma grande quantidade de consultas. 

As empresas de planos de saúde acabam limitando o número de sessões, indicam clínicas distantes da residência do paciente, as clínicas por sua vez passam a exigir que o paciente apresente guias de autorização que são negadas… Tudo isso para dificultar ou impedir que o tratamento seja custeado por eles.

Mas, novamente a Resolução Normativa 539/22 vem ao encontro dos direitos do portador do espectro autista ao garantir a realização do tratamento sem limitar a quantidade de terapias, para que o desenvolvimento do paciente seja cada vez mais eficaz sem encontrar limitações e inviabilização para tratar as suas necessidades clínicas.

Quem decide quantas consultas o paciente precisará é a equipe multidisciplinar, não o plano de saúde.

  • 3º argumento: “Não fazemos reembolso de consultas com profissionais particulares”

Há muitas operadoras de saúde que não conseguem fornecer todas as especialidades necessárias neste cenário, cabendo aos pais e responsáveis da criança com TEA buscarem profissionais que estão fora da rede credenciada.

Em seguida, as operadoras de saúde recusam o reembolso das despesas incorridas devido às limitações de suas coberturas.

Contudo, de acordo com a Resolução nº 259/2011 da ANS, a operadora tem um prazo máximo para conseguir um especialista adequado para atender o contratante. Caso contrário, é obrigação do plano reembolsar o beneficiário ao buscar um profissional privado, incluindo as despesas com transporte. Este reembolso deve acontecer em até 30 dias.

Também há casos em que diante de todas as dificuldades impostas pelos planos de saúde ao tratamento multidisciplinar, as famílias optem por contratar, de forma particular, mesmo quando não há recursos financeiros para tanto, os profissionais especialistas para realizar as terapias necessárias ao paciente, de forma a não prejudicar o desenvolvimento neuropsicomotor do portador do TEA.

É possível, no entanto, buscar o reembolso dessas consultas e terapias por meios judiciais, comprovando a necessidade delas com laudo médico detalhado e provando a negativa ou dificuldade imposta pelo plano de saúde. É necessário um acompanhamento especializado em direito à saúde que saiba como proceder nesse tipo de processo.

Busque orientação jurídica

É de conhecimento geral as estratégias legais que os planos de saúde adotam para recusar ou restringir a cobertura de tratamentos de alto custo no Brasil. 

Porém, no contexto do Transtorno de Espectro Autista, essa recusa pode ter um impacto significativo na vida futura do paciente, ao limitar suas opções de tratamento e a rapidez necessária para o tratamento adequado.

Por isso, nós da Kobi Advogados, deixamos mais claro nesse artigo as brechas que as operadoras usam para negar o tratamento específico e multidisciplinar necessário no caso do autismo. Somos especializados em direito à saúde e conhecemos os caminhos que os planos de saúde seguem, assim como os caminhos para obter decisões favoráveis que garantam a cobertura das terapias indicadas pela equipe médica.